Publicação em
08/06/2017
Publicado originalmente em 01 de junho de 2017 no jornal Carta ForensePor dr. Rafael Neubern Demarchi Costa - Procurador-Geral do MPCSP

Comissionados têm direito a FGTS?

Uma discussão de grande impacto para os cofres públicos tem merecido a atenção do Tribunal e do Ministério Público de Contas de São Paulo: deve a Administração Pública pagar multa sobre o saldo do FGTS quando exonera comissionados? Aliás, é cabível recolher FGTS para comissionados?

No caso de servidores comissionados estatutários, não há maiores dúvidas: por não se submeterem ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho, não fazem jus às verbas do FGTS.[1]

A controvérsia que há é em relação aos comissionados celetistas. O Tribunal de Contas do Estado de São Paulo sempre teve sólida jurisprudência no sentido de não ser devido o recolhimento de FGTS sobre a remuneração dos comissionados, mesmo se adotado o regime celetista, tendo em vista a possibilidade de admissão e exoneração ad nutum prevista na Constituição. No entanto, ocorreu de alguns Municípios paulistas serem surpreendidos por reclamações trabalhistas destes comissionados, alguns com vitória no âmbito da Justiça Obreira.[2]

Inclusive, o Tribunal Superior do Trabalho, mais recentemente, proferiu decisões reconhecendo ao comissionado celetista o direito aos depósitos do FGTS. No entendimento da Justiça Trabalhista, ainda que se trate de emprego com ausência de estabilidade e possibilidade de dispensa sem motivação, não poderia o ente público negar a aplicação da legislação trabalhista.

De toda forma, tais decisões do TST admitem que o comissionado celetista, apesar de fazer jus aos recolhimentos mensais ao FGTS, não tem direito a verbas rescisórias (em especial, o aviso prévio e a multa do FGTS).[3]

Ou seja, no atual entender da Justiça Trabalhista, a Administração Pública deve efetuar recolhimentos ao FGTS no caso dos comissionados celetistas, mas está dispensada do pagamento da multa sobre o saldo do FGTS no caso da exoneração.

Poderíamos discutir a razoabilidade de tal entendimento. Afinal, cabe recordar qual a ideia norteadora do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço.

Criado pela Lei 5.107/1966, o FGTS surgiu como uma opção para o trabalhador celetista. Na época, após 10 anos de trabalho na empresa, o trabalhador se tornava estável. Nas regras de então, ao empregado com mais de um ano de tempo de serviço e que fosse dispensado antes do decênio, era devida uma indenização, correspondente a um mês de salário para cada ano laborado. Após o decênio, essa indenização era dobrada.

A Lei 5.107 permitiu ao trabalhador a seguinte escolha: ao invés de ter garantida a estabilidade decenal e as citadas indenizações, teria direito um depósito equivalente a 8% da remuneração mensal em uma conta especial, a ser revertido na rescisão.[4] A partir da Constituição de 1988, com a extinção da estabilidade no emprego para empregados de empresas privadas, as Leis 7.839/1989 e 8.036/1990 passaram a considerar os trabalhadores, em sua maioria, como obrigatoriamente filiados ao FGTS.

De qualquer forma, o FGTS manteve seu caráter de buscar inibir a despedida imotivada, ao fixar ao empregador o ônus de pagar ao empregado uma multa de 40% sobre o montante de todos os depósitos realizados durante a vigência do contrato de trabalho.

Assim, o FGTS é fortemente ligado ao princípio da continuidade da relação de emprego.

Parece evidente que nenhum comissionado, por ser exonerável ad nutum, se abriga sob a proteção deste nobre princípio do direito trabalhista.

Não custa lembrar que a própria criação de um cargo em comissão, por exigir de quem vier a ocupá-los o estabelecimento de vínculo de confiança ou fidelidade com a autoridade nomeante, liga-se à ideia de temporariedade, com provimento em caráter precário. Por outro lado, atividades ininterruptas e permanentes, que devem ser desempenhadas com profissionalismo e sem sobressaltos a despeito da troca momentânea das autoridades nomeantes, não podem ser destinadas ao provimento em comissão, por não se coadunarem com a ocupação em caráter transitório.

Portanto, em razão da previsibilidade da dispensa a que está sujeito o comissionado, é incongruente que lhe sejam aplicadas normas trabalhistas de índole protetiva, que visem a compensar a demissão imotivada, como os recolhimentos ao FGTS.

Interessante lembrar que o art. 287 da Constituição Paulista previa a possibilidade de a lei instituir uma “indenização compensatória a ser paga, em caso de exoneração ou dispensa, aos servidores públicos ocupantes de cargos e funções de confiança ou cargo em comissão, bem como aos que a lei declarar de livre exoneração”.

Ou seja, a Constituição de São Paulo previa uma espécie de ‘FGTS estadual’.

Todavia, o Supremo Tribunal Federal declarou esta norma inconstitucional, sob o argumento que “a disposição que prevê o pagamento pelos cofres públicos de indenização compensatória aos ocupantes de cargos em comissão, sem outro vínculo com o serviço público, por ocasião da exoneração ou dispensa, restringe a possibilidade de livre exoneração”.[5]

Então, na verdade, é preciso voltar a nossa discussão inicial para uma questão antecedente: é possível submeter comissionados ao regime da CLT?

O Tribunal de Justiça de São Paulo responde esta pergunta com um enfático e sonoro não, afirmando o vínculo eminentemente administrativo do comissionado.

Diversas ações diretas de inconstitucionalidade têm rechaçado a previsão da existência de comissionados submetidos ao regime celetista. Como exemplo, os recentes casos dos municípios de Iguape, Cajuru, Lagoinha, São Luís do Paraitinga, Bariri, Conchas, Tremembé, Morungaba e São Pedro do Turvo[6]; ou, no âmbito estadual, os casos dos comissionados celetistas da Fundação PROCON, da Fundação de Amparo à Pesquisa e do Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza.[7]

Acertadamente, entende o TJ-SP que há incompatibilidade entre os direitos indenizatórios previstos na legislação trabalhista e a liberdade de exoneração imotivada inerente aos comissionados.

Mas não apenas isto, eis que são vários os direitos trabalhistas incompatíveis com a natureza do cargo comissionado, como o pagamento de horas extras, seguro-desemprego, etc.

Aliás, por conta de todos estes fatores, no âmbito da Administração Federal é expressamente vedado submeter comissionados ao regime da CLT (art. 1º, § 2º, alínea ‘b’, Lei 9.962/2000).

Resta agora às administrações estaduais e municipais adequarem o regime jurídico de seus comissionados. Até que não o façam, estarão sujeitas a revezes na Justiça Trabalhista (dado o entendimento atual), podendo abrir um desnecessário flanco a prejudicar ainda mais suas combalidas finanças.


[1] Ainda assim, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo foi indagado a respeito por seus jurisdicionados. Na Consulta 16827/026/05, da relatoria do Conselheiro Renato Martins Cotas, julgada em 18.09.2006, assentou-se a impossibilidade de recolhimento ao FGTS no caso de comissionados estatutários.
[2] Dada a celeuma sobre a natureza do vínculo do comissionado celetista, algumas discussões foram remetidas à Justiça Comum Estadual. Neste caso, a jurisprudência do TJ-SP sempre foi no sentido inverso da Justiça Trabalhista, vale dizer, pelo não recolhimento do FGTS. Neste sentido, vide Apelações 0008016-73.2010.8.26.0201, 0015173-27.2011.8.26.0019 e 0003618-78.2014.8.26.0319.
[3] Como exemplo, os seguintes julgados da SBDI-1: E-ED-RR-3193-17.2013.5.02.0089, j. 13.10.2016; E-RR-20786-26.2014.5.04.0006, j. 22.09.2016; E-RR-300-42.2013.5.12.0035, j. 12.05.2016.
[4] Se a rescisão fosse com justa causa, o empregado faria jus apenas aos depósitos; se não, aos depósitos, correção monetárias, juros capitalizados e ainda uma multa a ser paga pela empresa.
[5] STF, Pleno, ADI 326-7/SP, Rel. Min. Paulo Brossard, j. 13.10.1994, v.u.
[6] ADIs 2198467-66, 2160715-26, 2121797-50, 2171346-29, 2138871-20, 2160724-85, 2217951-33, 2007241-35 e 2036826-35.

[7] ADIs 2002639-98, 2208097-15 e 2218008-51.