Artigo de Procuradoras alerta sobre o risco de desmoronamento fiscal das cláusulas pétreas
Garantias de custeio das cláusulas pétreas são remédios constitucionais
Quais escolhas constitucionais perenizam nosso compromisso civilizatório comum? Como amparar o complexo processo de execução de tais escolhas cotidianamente para que elas não sejam meras promessas formais, sobretudo em face das mudanças sociais e econômicas?
Cláusulas pétreas custam e o orçamento público precisa lhes resguardar suficiente financiamento como garantia de sobrevivência da nossa identidade constitucional. Eis a razão pela qual a Constituição de 1988 não só as arrolou em seu art. 60, §4º, como também fixou seus respectivos meios operacionais e financeiros de consecução, conforme vemos a seguir:
Cláusulas Pétreas | Garantia(s) orçamentário-financeira(s) |
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Forma federativa de Estado | Repartição das receitas tributárias e transferências obrigatórias mediante fundos de participação dos estados e municípios – FPE e FPM (arts. 157 a 159) |
Voto direto, secreto, universal e periódico | Organização da Justiça Eleitoral (arts. 118 e 121), fundos eleitoral e partidário (art. 17, §º) e financiamento primordialmente público das eleições (ADI 4650) |
Separação dos Poderes | Autonomia financeira dos Poderes e Órgãos Autônomos, sem prejuízo das emendas parlamentares impositivas (art. 29-A, §2º, art. 44 e art. 166, §§11 e 12; arts. 73 e 75; art. 99; art. 127, §§2º a 6º; art. 134, §§1º e 2º, todos da CF/1988, bem como tetos individualizados nos incisos do caput do art. 107 do ADCT) |
Direitos e garantias individuais | Pisos de custeio das ações e serviços públicos de saúde e da manutenção e desenvolvimento do ensino (arts. 167, IV, 198 e 212 da CF, bem como art. 110 do ADCT), contribuições sociais (arts. 149 e 195), Orçamento da Seguridade Social (art. 165, §5º, III) e Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica Obrigatória e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB (art. 60 do ADCT) |
Fonte: elaboração própria a partir da CF/1988
Muito embora a tabela acima tenha tido a deliberada intenção de fomentar uma rápida e primária comparação, interessa-nos, a partir dela, dar um passo adiante. A questão que trazemos para debate é: considerando que não há densidade normativa na afirmação formal das cláusulas de identidade constitucional, se não houver efetivo resguardo dos mínimos meios necessários para sua consecução, qual seria a natureza jurídica das garantias orçamentário-financeiras que as amparam?Como o próprio título deste artigo antecipa, nossa hipótese – que esposamos ao lado de sólida corrente doutrinária – é a de que todas as garantias instrumentais das cláusulas pétreas devem ser consideradas como expressão da sua dimensão objetiva (verdadeiros deveres de tutela estatal) e, portanto, devem integrar o rol ampliado dos usualmente denominados “remédios constitucionais”.
Do ponto de vista do cidadão que percebe a atuação estatal, mesmo entre as próprias cláusulas pétreas, cabe pautar nexo de instrumentalidade recíproco, na medida em que três delas são meios para assegurar o devido processo de perfazimento dos fins inscritos na última.
Nuclearmente, o pacto constitucional brasileiro determina que haja o exercício democrático do poder na federação, assim como que ele esteja sujeito aos influxos recíprocos de controle. Mas isso não basta, uma vez que a organização legítima do exercício do poder (eleito democraticamente, separado funcionalmente e distribuído territorialmente) não é um fim em si mesmo em nosso país.Ao nosso sentir, os três primeiros incisos do §4º do art. 60 mobilizam poderosos e onerosos instrumentos em prol da finalidade primordial de implementação progressiva dos direitos fundamentais, que, de fato, é o último e mais exigente inciso do aludido elenco de cláusulas pétreas.O desafio é equalizar limites fiscais e diversos pleitos que concomitantemente clamam por priorização orçamentária, sem perder de vista – em qualquer cenário – a primazia do custeio dos direitos fundamentais. Cabe retomar, a propósito, o enfático aviso dado pelo Ministro Celso de Mello na ADPF 45:
“[...] a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.
Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da “reserva do possível” – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.”
O que estava em debate em 2004 na aludida arguição de descumprimento de preceito fundamental era o próprio alcance do piso federal em saúde, diante do risco do seu falseamento contábil. Naquela ocasião, o STF restabeleceu – conceitualmente, ainda que de forma indireta – a integridade do gasto mínimo em saúde, ao impor à União um reforçado ônus de motivar a sempre aventada tese de “reserva do possível” em meio à cotidiana gestão da escassez.
Tornou-se obrigatório motivar a gestão do custo de oportunidade de onde e como melhor alocar recursos humanos, econômicos, temporais ou tecnológicos. Isso porque a Fazenda Pública deveria apresentar “justo motivo objetivamente aferível” diante da frustração, adiamento ou restrição de eficácia dos direitos sociais, para que fosse afastada a impugnação de que o governo apenas estaria a promover uma “indevida manipulação de sua atividade financeira”.
A despeito da reafirmação jurisprudencial da presunção de prioridade orçamentária em prol do piso federal em saúde e mesmo após o decurso de 16 anos desde a ADPF 45, nós pouco avançamos no controle jurídico do ciclo orçamentário de todos os entes da federação.Rendemo-nos facilmente à univocidade de propostas gravosas, sem maiores indagações sobre a existência de rotas alternativas de ajuste fiscal (para enfrentar francas iniquidades como, por exemplo, as renúncias fiscais concedidas por prazo indeterminado e a inconstitucional omissão em fixar limites para as dívidas consolidada e mobiliária federal).
Quedamo-nos juridicamente inertes, sob a chantagem do risco de “horror econômico”, em face de agendas discricionárias e, por vezes, erráticas que supostamente reclamam urgência/emergência, mas que se prestam o papel de desconstrução paulatina e nada transitória daquelas garantias de custeio das próprias cláusulas pétreas.Assim se sucederam oito (!) emendas de Desvinculação das Receitas da União (DRU) e uma emenda sobre o “Novo Regime Fiscal”, que, na prática, visaram restringir (quiçá uma erosão deliberada a sistemática de priorização orçamentária dos direitos sociais inscrita no texto permanente da Constituição de 1988 por, respectivamente, 29 e 20 anos.
Eis o contexto em que chegamos a este ano de 2020, no qual todos os que lutamos em prol da máxima eficácia dos direitos fundamentais não conseguimos refutar, com clareza e ênfase necessárias, a inconstitucionalidade de algumas teses econômicas e propostas de emenda que relativizam e até pugnam pela extinção das vinculações orçamentárias protetivas do custeio dos direitos fundamentais.
A pretensão de inserir no art. 6º da Constituição o princípio do equilíbrio fiscal intergeracional tende a desconstruir a presunção de prioridade orçamentária que milita em favor dos direitos fundamentais. Daí decorre o risco de que seja paulatinamente desfeito o legado interpretativo da ADPF 45, em nosso país tão desigual e tão carente de serviços públicos essenciais.Precisamos nos unir, pois, em torno da defesa do pacto constitucional civilizatório de 1988.
É tempo de resgatarmos a centralidade da teoria dos direitos fundamentais, em prol de medidas de ajuste fiscal constitucionalmente adequadas e mais equitativas.
Cabe a nós exercermos o contraditório contra teses reducionistas que buscam a extinção da garantia de gasto mínimo em direitos sociais proporcional à arrecadação estatal. Ora, o que está em xeque é o próprio horizonte da implementação progressiva dos direitos fundamentais, diante da ruptura do liame nuclear do gasto mínimo social em proporção da receita governamental.Sustentamos, aqui, a necessidade de que seja resguardado o processo de sedimentação da jurisprudência protetiva do STF. Aliás, um belo farol interpretativo foi aberto com a cautelar concedida pelo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5595 (cuja retomada do julgamento está pautada para o próximo dia 11/03/2020), senão vejamos:
“Não cabe omissão deliberada, tampouco retrocesso no custeio do direito à saúde, ainda que não se possa pretender assegurar ilimitadamente – no campo das demandas individuais, inclusive judiciais, pela integralidade do direito à saúde – tratamentos alheios aos limites orçamentários, administrativos e tecnológicos da política pública.
[...] Fato é que a ocorrência de reforma constitucional que vise ao aprimoramento dos direitos e garantias fundamentais é medida desejável de atualização dos fins e preceitos da CF, mas alterações que impliquem retrocesso no estágio de proteção por eles alcançado não são admissíveis, ainda que a pretexto de limites orçamentário-financeiros.”
É chegado o momento em que devemos afirmar, com força teórica e resgate da integridade constitucional, que as garantias orçamentário-financeiras que amparam as cláusulas pétreas também estão protegidas pelo princípio da vedação de retrocesso. Conforme a parte final do inciso IV do §4º do art. 60, as vinculações orçamentárias são elas próprias – na qualidade de garantias fundamentais – cláusulas pétreas.
Garantias de custeio são uma espécie ampliada de remédios constitucionais e, assim como o habeas corpus, o mandado de segurança, a ação popular, o habeas data e o mandado de injunção, são instrumentos operacionais de defesa da consecução material das cláusulas pétreas substantivas.Vedar retrocesso não é vedar a necessidade de correção de rumos. Tais dispositivos podem ser alterados, sim, para aprimorá-los, o que, ao nosso sentir, significa prever, por exemplo, que o dever de execução dos pisos em saúde e educação seja feito de forma estritamente aderente aos respectivos instrumentos de planejamento setorial.
Melhorar as vinculações orçamentárias para resguardar a qualidade dos gastos públicos empreendidos em seu nome é medida de reforço da identidade constitucional. Por outro lado, sua pura e simples extinção, a pretexto de abstrata eficiência ou suposta alocação democrática pelos governantes de ocasião, traz consigo o risco de aplicação curto prazista e fisiológica dos escassos recursos públicos, além do risco de descontinuidade de serviços públicos essenciais.
A tensão entre o que pode ser mudado e o que deve ser mantido na dinâmica constitucional brasileira cada vez mais tem se desenrolado – dramática e diuturnamente – na disputa sobre o que é prioridade alocativa (ou não) dentro do ciclo orçamentário.A erosão de qualquer dos quatro pilares inscritos no §4º do art. 60 da CF fragiliza estruturalmente nosso ordenamento, pois há entre eles evidente conexão reflexiva e reforço normativo. Infelizmente, contudo, a comunidade jurídica não tem tido suficiente clareza sobre o severo risco de desmoronamento fiscal das cláusulas pétreas, a pretexto de desvinculação, desindexação e desobrigação do ciclo orçamentário em relação, sobretudo, aos direitos sociais.
Insistimos, uma vez mais, que não basta formalmente vedarmos que não haja mitigação da (I) federação brasileira; do (II) ciclo eleitoral mediante voto direto, secreto, universal e periódico ou mesmo, ainda, do (III) sistema de freios e contrapesos. É necessário que defendamos, mediante garantia de prioridade orçamentária efetiva, o compromisso civilizatório para com a realização intertemporal dos (IV) direitos fundamentais.
Afinal, a razão de ser do Estado brasileiro e mesmo a finalidade da distribuição do poder federativamente, em um sistema balanceado de controle e sob influxo democrático-eleitoral, em última instância, é resguardar a vida digna de todos os cidadãos, por meio de serviços públicos e políticas públicas que implantem progressivamente a máxima eficácia dos direitos fundamentais.