Artigo: "Direito Processual de Contas: Manual de Boas Práticas Processuais nos Tribunais de Contas"
Por Dra. Renata Constante Cestari e Dr. Alexandre Manir Figueiredo Sarquis
Os Tribunais de Contas são órgãos de identidade própria e encontram na Carta da República o fundamento de sua existência, motivo bastante para serem chamados de órgão de extração constitucional – eis a sua natureza. Possuem uma interface peculiar, atuando ora na dimensão administrativa, ora na judicante.
Quando imbuídas na função judicante, em colorido quase-jurisdicional, e a fim de garantir uma maior efetividade de suas decisões, as Cortes se valem de instrumentos de coerção, tais como cominação de multa, devolução de valores, inabilitação para o exercício de funções públicas e inidoneidade para celebrar contratos com a administração, assim como outras de sanção de natureza pessoal.
Há ainda as limitações eleitorais trazidas pela Lei de Inelegibilidades. Basta o decreto de irregularidade ou o parecer prévio adverso para causar constrangimento público aos agentes atingindo-os em sua reputação, além do que a determinação de irregularidade do contrato faz cessar os lucros das contratadas. Logo se vê o prejuízo de cunho pessoal como resultado possível das ações de controle externo. A controvérsia que envolve bens da esfera particular dos agentes reclama o devido processo, pois a previsibilidade do procedimento é da estabilidade das relações, reforça a confiança dos jurisdicionados e beneficia a segurança jurídica.
Não há, entretanto, um Código de Processo de Contas. É que se tomadas como cortes administrativas ou como cortes legislativas, somente a iniciativa subnacional poderia regular seu funcionamento. De fato, a iniciativa federal seria entendida como esbulho impossível na compacta independência das pessoas federadas. Discordamos disso.Abreviando esse hiato, vem o Manual de Boas Práticas Processuais, em cuja minuta repousa a fé de que algo moderno, eficaz e apropriado possa vir a se tornar cogente, seja por entrega voluntária da autonomia de que gozam os Tribunais, seja pela conversão em Lei Ordinária. Por qualquer das vênias, é necessário espancar a ideia.
1. Processo de Contas
A formalização processual é vértice do devido processo legal que se impõe quando da análise de direitos e obrigações controvertidas. Parte-se da premissa de que é necessária a instrumentalização de informações tendo como objetivo um resultado conclusivo. Ademais, o princípio da processualização informa também o Direito Administrativo brasileiro.
Na ciência jurídica, quando se fala do gênero processo e suas espécies, vem à mente o processo judicial, o legislativo e o administrativo. Entretanto, uma quarta espécie há de ser considerada – o processo de contas.
Sobrevivente de um juízo administrativo que o constitucionalismo brasileiro não recepcionou, os Tribunais de Contas sustentaram uma judicância sui generis na pessoa constituída.
Observe que, ainda que se lhe atribua, na estrutura organizacional do Estado, a condição de órgão auxiliar das Casas Legislativas, o Tribunal de Contas encontra-se constitucionalmente conformado em óbvios paralelos com as seções do Judiciário, seja pelas prerrogativas concedidas a Ministros e Auditores; pela natureza de título executivo de suas decisões; pela presença de um Ministério Público oficiante; pela auto organização que lhe é concedida; ou pelo tanto mais que lhe é peculiar. Deveras. Seria impróprio considerar o processo de contas apenas como um instrumento administrativo tão somente por tramitar em órgão alheio ao Judiciário. Noutra vertente não pode ser considerado de natureza judicial. Seabra Fagundes, no entanto, não vê óbices para afirmar que o monopólio da jurisdição pelo Judiciário é ressalvado expressamente em dois pontos da Constituição, quais sejam a competência do Senado de julgar os crimes de responsabilidade do Presidente da República, e a competência do Tribunal de Contas de julgar as contas de administradores. Eis algumas peculiaridades do processo de contas a confirmar sua identidade própria:
I. existência obrigatória de um Ministério Público atuante em todos os processos de contas, órgão este de extração constitucional e inexistente no processo administrativo;
II. inexistência de litígio, sendo, no mais das vezes, um processo dúplice, figurando como interessados o Tribunal de Contas e o Gestor – o que o afasta a relação piramidal do processo judicial;
III. o ônus da prova do gestor12, tratando-se aqui de uma regra, e não de exceção, como sói acontecer no âmbito judicial.
Na solução do mérito, as Cortes de Contas não se limitam à analise da legalidade estrita, ingressando amiúde no mérito de conveniência e oportunidade dos atos, ainda que de forma preventivo-pedagógica, como bem reflete a minuta do Manual de Boas Práticas Processuais nos Tribunais de Contas. Confira:
“7.2 Os Tribunais de Contas, além das determinações, deverão fazer recomendações para a correção das deficiências verificadas no exercício do controle externo, visando ao aprimoramento da gestão dos recursos públicos. No entanto, quando detectado vício de antijuridicidade, convém dar preferência à determinação, pois não se trata de mera sugestão de aperfeiçoamentos procedimentais.”
Por fim, o próprio Judiciário consagra a natureza de juízo especializado do Tribunal de Contas, declarando a insusceptibilidade de revisão das decisões em copiosa jurisprudência tanto de Tribunais Estaduais:
"Ação declaratória de nulidade dos efeitos do acórdão do Tribunal de Contas (...) As decisões dos Tribunais de Contas só poderão ser impugnadas judicialmente quando despontar manifesta ilegalidade ou irregularidade formal grave no procedimento administrativo que resultou na formação do título, não podendo o Poder Judiciário se adentrar na questão meritória, inteligência do art. 71, §3°, da CF". (TJPB, Apelação Cível n° 99.005452-6, Rel. Des. Antônio Pádua Lima Montenegro).
quanto da Justiça Federal:
"(...) o TCU só formalmente não é órgão do Poder Judiciário. Suas decisões transitam em julgado e têm, portanto, natureza prejudicial para o juízo não especializado" (TRF 1a. Região, 3a. Turma, Apelação Cível n° 89.01.23993-0/MG, Rel. Juiz Adhemar Maciel, DJU 14.09.92).
e do STF:
"(...) o Tribunal de Contas pratica ato insusceptível de revisão na via judicial a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de Ilegalidade Manifesta. Mandado De Segurança Não Conhecido" (STF MS 7280, Rel. Min. Henrique D'avilla, Dj 17.09.1962).
2. Lei Nacional de Processo de Contas
Não raro as leis orgânicas dos Tribunais de Contas estabelecerem como critério de integração as leis federais, v.g., o Código de Processo Civil. Observe, no entanto, que a translação direta dos preceitos pode não ser apropriada, haja vista que a relação jurídica processual triangular idealizada pelo autor alemão Oskar Von Büllow, composta por juiz, autor e réu, não se forma na apreciação de contas. Não há remédio senão a sistematização de uma lei única de processo, como se dá no processo penal, civil ou no eleitoral. Já houve, anote-se, grupo de trabalho da Atricon que encaminhou minuta de anteprojeto de Lei Nacional do Processo de Fiscalização dos Tribunais de Contas ao Tribunal de Contas da União.
O TCU, no entanto, entendeu que lhe falecia competência para a iniciativa. De fato, há discussão sobre a propriedade e a constitucionalidade de uma lei processual nacional a regular o Processo de Contas.
Tolerar que as instituições desenvolvam-se neste panorama jurídico incerto é evitar uma questão nodular: como permitir que cada estado federado transija autonomamente com os institutos do devido processo e seus instrumentos, inaugurando versão própria de direitos e garantias fundamentais em envelope local?
Entendemos que no que seja afeto ao devido processo, ao contraditório, à ampla defesa, à obtenção de provas por meios lícitos e à razoável duração do processo, ou seja, em direito processual, o Legislativo da União tem todas as competências de editar regra geral, e deve fazê-lo. Nisto cabe a Lei Nacional do Processo de Contas.
Quanto à competência para propor, curiosa omissão se observa: falece a existência de um Tribunal Superior de Contas- o TCU não ocupa este papel. Resta a embaçada interlocução do sistema de Tribunais de Contas com o Congresso Nacional. Possivelmente um Conselho Nacional, que ainda não existe, poderia liderar a interlocução, conferindo resultado apropriado.
3. Sugestões à Minuta de Manual de Boas Práticas Processuais dos Tribunais de Contas
O núcleo dos elementos lançados na minuta é cerne incontroverso de entendimentos gerais de direito processual à luz do controle externo que fazem os Tribunais de Contas. Deve ser referência constante, ao lado dos regimentos internos, dos operadores dos processos. As divergências apuradas devem ser imediatamente informadas para aqueles incumbidos de mantê-lo.
Essencial, no entanto, que divergências importantes entre os ritos dos Tribunais sejam escrutinadas, apontadas e solucionadas.
É fato que as trinta e quatro instituições que integram o sistema de controle externo evoluíram independentemente umas das outras, sem revisão por entidade federal constituída para este fim – um Tribunal Superior. Se não convergiram em jurisprudência, divergiram também em ritualística.
Optar por lei que não entabule esta basilar questão, entregando-se à principiologia geral do processo, pode surtir esforço inócuo para os fins que pretende: colimar o que se entende por controle externo, ignorando as contradições relevantes existentes nos estatutos subnacionais.
Longe de se entender que princípios gerais sejam vazia retórica, há que se fazer mais. Contradições esclarecem mais sobre o que pede correção do que congruências. Mesmo que laborioso, impõem-se o exaustivo estudo de todas as leis orgânicas estaduais.
A título exemplificativo, algumas possíveis divergências:
I. o procedimento de julgamento de contas de mandatários – Prefeitos e Presidentes de Câmaras de Vereadores. Em sendo os presidentes das mesas do Legislativo simultaneamente ordenadores de despesas e mandatários, caberia perguntar se a disciplina a ser aplicada é a do parecer prévio ou do julgamento. Vale notar aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal já previa sistemática de parecer prévio para as contas dos chefes de Legislativo, Judiciário, e Ministério Público, matéria com liminar concedida em sede de ADI. Já com relação aos Prefeitos há que se fazer clara a distinção entre ação sua enquanto Chefe de Governo – caso em que o Tribunal limita-se à emissão de parecer prévio, e ação sua enquanto ordenador de despesas – o que reclama julgamento do Tribunal.
II. inadimplemento de recomendações ou determinações do Tribunal de Contas como crime de responsabilidade. Uma maior reverência às recomendações do Tribunal poderia ter como consequência o adensamento desta parte em acórdãos de parecer prévio, evitando que apenas o parecer desfavorável possa constranger o agente à correção de conduta.
III. litigância de má-fé. Viria como forma de resgatar a boa-fé processual, impedindo a manobra político-administrativa dos instrumentos do Tribunal.
IV. meios para assegurar a efetividade das decisões. O processo civil sugere o uso de “astreintes” e de vedação dos embargos protelatórios, entre outros.
V. dosimetria. Além dos limites de multas possíveis nos casos em que a) há prejuízo ao erário calculado; b) prejuízo inferido; e c) princípio geral violado sem prejuízo ao erário; poderia haver a previsão geral de circunstância atenuantes ou agravantes, a exemplo do enriquecimento do agente ou da emergência manifesta. Mais: poderia a lei facultar a análise de elementos subjetivos da conduta com o reconhecimento de comportamentos dolosos e culposos e de natureza sanável ou insanável da falha.
VI. clareza nas definições. Existem entendimentos diferentes dados a palavras idênticas nos Tribunais, tais como determinação, ressalva, recomendação, relevação, vistoria, inspeção, tomadas de contas especial, apartado, ação de revisão, rescisão e reexame.
VII. classificação clara, completa e racional para as modalidades de processo. Aí dizendo também as espécies de recursos, efeitos processuais, prazos e condições de admissibilidade, distribuição, autoridade competente, nomenclatura única e prazo para julgamento.
VIII. forma de tratamento do concurso de pessoas. A figura do ordenador de despesas deve receber maior atenção, haja vista a possibilidade de que as organizações governamentais modernas segregarem-se em hierarquia de tal forma a ser possível a gradação na responsabilidade de autores e partes que produziram o ato irregular.
IX. atribuições de Conselheiros-Substitutos e uniformização de sua nomenclatura. Observa-se multiplicidade de tratamentos, quantidades de cargos nos quadros, competências e nomenclaturas para os Auditores dos Tribunais de Contas. A incerteza faz com que o mesmo cargo represente atribuições e importâncias completamente diferentes, dificultando a compreensão dos jurisdicionados.
X. julgamento dos pareceres prévios nas Câmaras de Vereadores e Assembleias Legislativas. Havendo o emprego da expressão “julgar”, há que se reconhecer a propriedade de que a mesma Lei Nacional ingressasse no itinerário processual que se desenvolve nos parlamentos, estabelecendo prazos, contraditórios, recursos e o trânsito em julgado.
XI. tratamento uniformizado dos incidentes de inconstitucionalidade de leis municipais e da regra de reserva do plenário. Tema que se controverteu após manifestação do Ministro Gilmar Mendes na apreciação do MS 25.888/DF e do que consta da Súmula Vinculante nº1028.
Conclusão
A profusão de disposições processuais esparsas em Leis Orgânicas e Regimentos, por vezes contradizendo-se, demonstram a urgência que o Sistema dos Tribunais de Contas tem de verter os eixos do devido processo, da transparência, da razoável duração do processo e da eficaz aplicação de recursos públicos em fortalecimento da república.
A forma de colimar as melhores disposições processuais é uma Lei Nacional – de que as disposições do manual de boas práticas são prolegômenos –, sendo a competência para sua propositura questão de relevo e que precisa ser dirimida. Sugerimos a criação de comissão de juristas no âmbito do Congresso Nacional.
O resultado deste trabalho poderia ser proposto pela Presidência da República, pelo CNTC, caso fosse ele legitimado constitucionalmente, ou ainda como ato conjunto do TCU e do Presidente da República.
* Dra. Renata Constante Cestari é Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo
* Dr. Alexandre Manir Figueiredo Sarquis é Auditor Coordenador do Corpo de Auditores do TCE/SP