Descompasso federativo no financiamento da saúde pública brasileira
Publicado originalmente em 04 de abril de 2015 no site www.conjur.com.br
Por Dra. Élida Graziane Pinto
O presente artigo tem por finalidade debater duas constatações aparentemente óbvias e inter-relacionadas quando se fala na máxima eficácia do direito à saúde no Brasil: o Sistema Único de Saúde não tem fontes suficientes e adequadas de custeio, mas os municípios, em regra, aplicam patamares de gasto no setor significativamente acima do piso constitucional que lhes foi determinado[1].
Tais constatações reclamam levantamento de causas e, sobretudo, de consequências para que se desfaça o impasse e se assegure ao cidadão seu direito, sem se que onere excessivamente o Poder Público local, até porque há ali inúmeras outras obrigações constitucionais por se cumprir, como o são o saneamento básico e a mobilidade urbana.
Assim, diante da notícia[2] de que 20% dos municípios paulistas com mais de 50 mil habitantes gasta mais do que o dobro do mínimo constitucional em saúde, é preciso refletir se tal descompasso federativo decorre de alguma das situações hipotéticas abaixo arroladas:
1) o ente aplica muito, porque gasta mal e a baixa qualidade da saúde no município decorre de falhas de gestão e eventual desvio de recursos (terceirização indevida, parcerias inefetivas e onerosas com entidades do terceiro setor, falta de pessoal permanente, falta de controle de almoxarifados/ contratos de serviços e abusos licitatórios etc);
2) a prefeitura aplica muito, porque o avanço das demandas judiciais em busca de medicamentos e procedimentos na saúde pública onera primordialmente os municípios e faltam recursos estaduais e federais;
3) o município aplica muito, por causa da judicialização, mas aplica mal (conjugação das hipóteses anteriores).
Eis um cenário complexo, de cuja compreensão sistêmica não se pode furtar, razão pela qual todas as situações acima indicam caminhos de investigação socialmente relevantes. Mas, por força de necessário foco metodológico, as falhas de gestão e os desvios de recursos de que tratam as hipóteses 1 e 3 não serão assumidos como alvo de investigação neste momento. Isso porque o problema de má qualidade do serviço de saúde pública, a despeito dos altos índices de gasto no setor em algumas realidades municipais, reclama, por si só, análise exaustiva de dimensões e variáveis referidas a contextos fáticos que não se tem, ao menos, por ora, condições de explorar.
Dado o caráter de rápida digressão teórica que o presente texto assume, interessa, pois, passar ao enfrentamento abstrato da situação contida na hipótese 2 (realidades locais bem geridas, mas oneradas especialmente pelo subfinanciamento federal da saúde).
Vale lembrar, a esse respeito, que, durante o longo intervalo de quase 15 (quinze) anos entre a Emenda 29, de 13 de setembro de 2000, e a recentíssima Emenda 86, de 17 de março de 2015, a União não teve qualquer correlação entre o comportamento progressivo da receita federal com o seu volume de gastos no SUS.
Isso ocorria, pois o critério normativo de gasto mínimo a ser vertido pelo Governo Federal para as ações e serviços públicos de saúde (ASPS) sempre cuidou de manter o patamar do ano anterior corrigido tão somente pela variação nominal do PIB, o que teve como consequência o estabelecimento de uma vinculação estagnada do gasto federal em saúde.
Somente a partir de 2016, conforme o teor do artigo 2º da EC 86/2015[3], é que a União passará ter compromisso de gastar porcentual incidente sobre sua receita corrente líquida (RCL). Mesmo assim, haverá escalonamento de índices mínimos ditos “progressivos”, para que — em 2020 — seja possível chegar ao novo patamar de 15% da RCL federal para a política pública de saúde.
Por outro lado, o critério de gasto mínimo em saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios, tal como definido pela Emenda 29/2000 e mantido pela EC 86/2015, sempre correspondeu a porcentual da arrecadação de impostos e transferências. Tal distorção federativa de critérios propiciou, ao longo dos últimos quinze anos, uma forte tendência de correlação positiva entre, de um lado, incremento da receita tributária de impostos e, de outro, majoração dos gastos em saúde para os entes subnacionais.
Com lastro em levantamento feito em sede de estudos pós-doutorais[4] e na observação direta das prestações de contas dos governos municipais paulistas no âmbito do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, é possível afirmar que foram as Prefeituras, na média, que assumiram a maior parte do custo fiscal diante da pressão social (por vezes judicializada) pela efetividade do direito à saúde.
Os patamares historicamente progressivos de gasto mínimo em saúde dos municípios durante o período de quinze anos em comento, em maior ou menor grau, decorreram da regressividade proporcional do gasto federal em saúde e da clara tendência de manutenção dos gastos estaduais em torno do seu piso constitucional no setor; isso quando não houve, por vezes, déficit[5] de aplicação do mínimo em saúde, sobretudo antes da LC 141/2012, por parte de alguns Estados.
Como já suscitado em outra oportunidade[6], fato é que, desde a EC 29/2000, a participação da União no custeio do Sistema Único de Saúde tem caído proporcionalmente tanto em face do quanto os demais entes federados aportam, bem como em relação ao quanto ela própria arrecada. Tal regressividade (que é relativa, já em que em termos nominais houve expansão formal do gasto federal em saúde) pode ser estatisticamente aferida à luz de qualquer dos seguintes quesitos de análise:
- participação relativa da União no volume total de recursos vertidos pelo Poder Público ao SUS (caiu de 59,8% em 2000 para 44,7% em 2011, segundo estudo do IPEA[7]);
- peso proporcional do gasto da União em saúde em face da sua própria receita global caiu de 8% para 6,9%[8];
- peso proporcional do gasto da União em saúde em face do total de recursos aplicados no Orçamento da Seguridade Social (OSS), o que corresponde ao critério de proporcionalidade estabelecido no artigo 55 do ADCT (conforme noticia a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde – AMPASA [9]).
Diante desse cenário, é que se pode derivar a hipótese de que o caráter crescente do gasto mínimo municipal não se trata de mera opção discricionária do gestor local, mas do resultado fiscal da compelida resposta às ações judiciais, dentre outras demandas de gasto no setor, como o são os próprios custos subestimados das transferências voluntárias feitas pela União para a execução descentralizada de ações e serviços públicos de saúde.
A esse respeito, estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM)[10]aponta para o desequilíbrio nas transferências federais para as ASPS, na medida em que os “incentivos financeiros [da União] representam no máximo 30% do custo real dos programas e das estratégias federais, sobrecarregando as finanças municipais com o custeio do SUS”.
Uma vez constatado o subfinanciamento crônico da saúde pública brasileira[11], depreende-se que a evolução do comportamento do gasto federal em ASPS desde 2000 milita em rota de afronta ao princípio da vedação de proteção insuficiente e ao princípio da vedação de retrocesso. Isso ocorre, sobretudo a partir da confluência de variáveis como o manejo de restos a pagar[12] (cancelados/ reempenhados/ mal fiscalizados), a contabilização de despesas indevidas[13] e a existência de dotações autorizadas e que restaram inexecutadas[14] para manter estagnado o piso federal em saúde ("piso" que, na verdade e factualmente, opera como "teto").
Por outro lado, a Desvinculação de Receitas da União (DRU) prevista no artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) mitiga, parcialmente, as fontes vinculadas de receitas que poderiam suportar a execução dos gastos autorizados[15] na lei orçamentária para a saúde.
Nesse sentido, a manutenção ao longo de 21[16] anos, por meio de 7[17]emendas à Constituição Federal de 1988, todas elas inseridas no ADCT (artigos 71, 72 e 76), da DRU reclama questionamento acerca da sua conformidade constitucional. Ora, tal regime excepcional e transitório de desvinculação de receitas já deveria ter expirado e, com o passar abusivo do tempo, revela-se progressivamente inconstitucional, nos termos assinalados pelo Supremo Tribunal Federal no RE 135.328/SP, e inadmissível omissão de custeio adequado como sinalizado no voto do ministro Celso de Mello proferido na ADPF 45/DF.
Vale lembrar, a esse respeito, que — para o cumprimento do direito fundamental à educação (artigo 212, CF) — já se corrigiu esta forma prejudicial de subfinanciamento, decorrente da DRU, na forma dos parágrafos 2º e 3º do artigo 76 do ADCT, desde a EC 59/2009, o que evidencia que essa metodologia de desvinculação (originariamente “transitória”, mas que tem sido reeditada há vinte anos) também é equivocada para a saúde.
Mas como propositivamente lidar com tal contexto? Esta é a angústia que persiste.
Passados quase 30 anos de vigência do novo texto constitucional, é chegada a hora de assentar que vedação de retrocesso para o financiamento constitucionalmente adequado do direito à saúde não seja interpretada apenas como vedação de extinção do seu arranjo protetivo. É importante que se passe a entender tal princípio também como vedação de estagnação imotivada, bem como vedação da interpretação restritiva que retire a possibilidade fática de o direito fundamental à saúde progredir.
Diante desse complexo cenário que onera o pacto federativo e amesquinha a máxima eficácia do direito à saúde, é que seria possível atrair a incidência do binômio “possibilidade-necessidade” objetivamente aferido no exame de pedido de prestações alimentícias, em consonância com o parágrafo 1º do artigo 1694[18] do Código Civil brasileiro, para, por meio de interpretação analógica, reequilibrar federativamente o dever estatal de custeio das ações e serviços públicos de saúde.
Quem tem maior capacidade arrecadatória deveria ser proporcionalmente implicado na necessidade de custeio do SUS, já que o financiamento da saúde pública e, em particular, os recursos federais destinados ao setor devem ser rateados entre os três níveis da Federação “objetivando a progressiva redução das disparidades regionais”, conforme o artigo 198, parágrafo 3º, inciso II da Constituição de 1988.
O critério estagnado de gasto mínimo da União (piso que opera como teto[19]) faz com que haja um patamar falseado de reserva do possível nas leis federais de orçamento anual. Como tem sido levantado no âmbito do Inquérito Civil Público 1.34.001.003510/2014-07, conduzido pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, o subfinanciamento federal da saúde pública no Brasil remonta à própria origem da EC 29/2000 e decorreria da confluência de variáveis como DRU, existência de contabilizações indevidas, cancelamento de restos a pagar contabilizados como ASPS e inexecução de dotações autorizadas.
Por ser tão antigo e crônico, começam a surgir no horizonte possibilidades discursivas de controle desse impasse no custeio do direito à saúde. Esta, afinal, é a esperança que opera como razão de ser deste artigo.
Uma rota interessante e que militaria no sentido de promover o controle incidental das tensões acima expostas passa pela inversão do fluxo da chamada “judicialização da saúde”, para impor à União o ônus argumentativo de vir se defender em ações judiciais propostas pelos Municípios para ressarcimento, em sede de responsabilidade solidária, do quanto esses gastaram com ações judiciais nos últimos 5 (cinco) anos.
Como já dito, o adensamento quantitativo e qualitativo de demandas judiciais na área da saúde tem sido suportado majoritariamente pelos Municípios e Estados. Como o Supremo Tribunal Federal admite a responsabilidade solidária[20] entre os entes da federação em relação ao dever de consecução do direito à saúde, não seria desarrazoado imputar à União, ainda que por meio de ações regressivas, a responsabilidade pela falta de custeio adequado do SUS ao longo dos últimos anos.
Em sede de ações regressivas, os municípios interessados poderiam, desse modo, apresentar o desequilíbrio federativo no custeio das ações e serviços públicos de saúde, não para buscarem reaver o excedente fiscal do quanto eles verteram a título de gasto mínimo em ações e serviços públicos de saúde, mas para imporem, de fato e de direito, maior corresponsabilidade fiscal da União no custeio do SUS.
Se a progressiva redução das disparidades regionais deveria constitucionalmente ser a finalidade do rateio dos recursos federais destinados à saúde pública em âmbito nacional e se ainda não tem sido assim, é tempo de reclamar para corrigir o descompasso federativo e a fragilidade fiscal do direito à saúde em favor de toda a sociedade.
Possível e necessário reequilíbrio, eis o que se espera.
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[1] Conforme o art. 198, §§2º e 3º da CR/1988, regulamentado pela LC 141/2012, o Município deve aplicar 15% (quinze por cento) da sua receita de impostos e transferências.